sábado, 29 de março de 2014

José Tolentino Mendonça

"Primaverar
 (...) Tem toda a razão a sentença de Lao Tsé: «Quando ingressam na vida/os homens são tenros e fracos;/ quando morrem , /são secos e duros./ Por isso, os duros e fortes/ são companheiros da morte, / e os tenros e frágeis/ são companheiros da vida." O nosso juízo de arrumação e remate (e as idealizações que projetamos a esse respeito) é enganador, mais não seja porque a vida é viva, florescente, é uma sucessão infinda de começos. Desde que nascemos estamos não só prontos para morrer, mas estamos sobretudo preparados para nascer, as vezes que forem precisas. Primaverar é persistir numa atitude de hospitalidade em relação à vida. Ao lado do previsto, irrompe o imprevísivel que precisamos aprender a acolher. Misturado com aquilo que escolhemos, chega-nos o que não escolhemos e que temos, na mesma, de viver (...)"

in "que coisa são as nuvens", Expresso, 22 de Março de 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

Herberto Helder

as musas cegas (II)

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada
pelas vozes.
E enquanto dorme o leite,
a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.

No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
- Límpidas, amargas.

Eis um tempo que começa: este é o tempo.
E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,
é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso de ouro.
E estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado
de seivas, para a noite que estremece
fundamente.

Melancolia com sua forma severa e arguta,
com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando
com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,
com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa
onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras
antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera
de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria -
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas
desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer
com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe
procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é
a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo. E apagaram-se as luzes.

- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente
para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.

É primavera. Arde além rodeado de sal,
por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia - É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.

poesia toda, assírio & alvim, 1996