terça-feira, 15 de abril de 2014

Eugenio Montale (1896-1981)

OS LIMÕES

Escuta, os poetas laureados
movem-se apenas entre plantas
com nomes pouco comuns: buxos, ligustros ou acantos.
Por mim, prefiro os caminhos que vão dar às fossas
cobertas de ervas onde em lameiros
meio secos os miúdos apanham
alguma enguia definhada:
as veredas que bordejam as ravinas,
descem por entre os tufos dos canaviais
e entram pelas hortas, por entre os limoeiros.

É melhor ainda quando a algazarra dos pássaros
se cala engolida pelo azul do céu:
mais claro se ouve o sussurro
dos ramos amigos no ar que quase não se move,
e as impressões deste cheiro
que não consegue separar-se da terra
e faz chover no peito uma doçura inquieta.
Aqui das divertidas paixões
por milagre cala-se a guerra,
aqui também nós os pobres temos a nossa parte de riqueza
que é o cheiro dos limões.

Olha, nestes silêncios em que as coisas
se abandonam e parecem perto
de trair o seu último segredo,
esperamos por vezes
descobrir um erro da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não liga,
o fio do novelo que finalmente nos leva
ao centro de uma verdade.
 O olhar procura derredor,
a mente indaga harmoniza separa
no perfume que se espalha
quando o dia mais enfraquece.
São os silêncios nos quais se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma perturbada Divindade.

Mas a ilusão perde-se e o tempo transporta-nos
até ruidosas cidades onde o azul se mostra
apenas em pedaços, no alto, entre os telhados.
Então a chuva cansa a terra; concentra-se
o tédio do inverno sobre as casas,
a luz torna-se avara - a alma amara.
Quando um dia, de um portão entreaberto
por entre as árvores de um pátio
se nos depara o amarelo dos limões;
e o gelo do coração se desfaz,
e ao peito afluem
as suas canções
as tormbetas de ouro da solidariedade.

Eugenio Montale, Poesia, Assírio & Alvim, 2004, pp. 45-46




sexta-feira, 11 de abril de 2014

Mira Schendel (1919-1988)


Agustina Bessa-Luís

OS JARDINS

Os jardins foram e serão a alma das cidades. E também de quem mora nelas. São lugares que prendem o coração às virtudes domésticas, porque nos jardins a criança brinca, os jovens namoram e os velhos descansam. São tudo períodos em que as recordações se reúnem e se povoam doutras recordações. Jardins históricos, jardins de passagem, outros com tristezas como asas suspensas na luz do meio-dia. Quem não teve um jardim, público ou privado, na sua infância, será um doente das suas próprias memórias. Há-de tossir com o frio desgarrado que não foi filtrado por nenhum plátano ou tília. Terá a cor do ar sombrio, e os olhos da solidão. O jardim é o princípio e o fim, o Éden e o Gethsémani. Os jardins às vezes morrem; mas deixam na terra alguma coisa de santo que as gerações aproveitam dizendo: «Aqui, não sei porquê, sinto-me bem aqui.»

Agustina Bessa-Luís, Caderno de Significados, Guimarães, 2013, pp. 78-79

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Vincent van Gogh (1853-1890)


João Paulo Esteves da Silva

ALENTOS

(Sephi alter)
        
       I
a amendoeira
acho que é dia
vou entre línguas
que ninguém sabe
amarga e branca
em pleno inverno
o sol já vinha 
florescia
fora da amêndoa
dentro das línguas
ninguém sabia
que despertava
com a flor primeira
acho que é dia
       
         II
mexe mexe damasqueiro
ainda sem  folhas ali
com as origens à mostra
todo o por dentro de fora
que até se vê através
das flores que não vieram
toca no que ainda dorme
mexe no mês de Janeiro
fica desarmado um ninho
onde o tronco se bifurca
desabitado  uma roda
de restos em turbilhão
mexe dentro da origem
toca na polpa do alperce
invisível mas que vem
relâmpago no caminho.

            III
se te lembras da China
ou se já tudo esqueceste, diz, 
amoreira tão alta, cansada de
tudo. cantas  agora em silêncio,
escuta-se   
a tua altura sem neve.
lembras-te ao menos do verão 
da fadiga, folha após folha
dizendo amoras amoras
dizendo tudo da seda da fruta.
cantar, diziam amoras
nos sinais do Outono
a cair a cantar

              IV

querem as uvas sair daqueles meandros 
daquelas matérias mortiças;
vide dormindo sem presença
passa despercebida 
tempo concentrado, vida escura
querem que  pague a fé na sepultura
que hás-de florir
dar sombra verde uma turba de mãos
estender-te velocíssima 
agarrar trepar aumentar invadir o espaço
fazer brotar cabelos de bagaço
sei por ouvir dizer
por histórias contadas repetidas
coisas do teu futuro
cachos sumos bebedeiras
bondades crimes carreiras.
acreditas que sonhei
estar sentado à tua sombra
num socalco de Lisboa
e depois vinha uma abelha
de Évora com um ferrão
(daqueles que suicidam qualquer abelha em qualquer lugar)
para me comer à mão?

       V
nespereira
não pereira
que já seca
que já arde
na fogueira
pêra seca 
sobre a mesa
desespera
a noite inteira
dizes freira
sempre verde
gargalhada
não esperada
cócegas dentro da nêspera
tragédias de Inês Pereira
nome doce
no caroço
abrasivo
na dentada
riso vivo
amarelo
como a casca
como a chama
alaranjada
quatro nozes
vinte vozes
contra a alma
mil algozes
no regresso do Japão
casa queimada não gozes

João Paulo Estesves da Silva