domingo, 30 de junho de 2013

Manuel Amado


Saint-John Perse (1887-1975)

XVIII
Agora deixem-me, vou sozinho.
Vou sair, pois tenho coisas a fazer: um insecto espera-me para
que o trate. Agrada-me
o grande olho facetado, anguloso, imprevisível como o fruto
do cipreste.
Ou então tenho um pacto com as pedras raiadas de azul: e
vós igualmente me deixais,
sentado, na amizade dos meus joelhos.
1908
 Elogios, Quasi, 2002 , p.  61

CANÇÃO

Parado o meu cavalo sob a árvore coberta de rolas, lanço um assobio tão puro, que não há promessas às suas margens que estes rios não cumpram. (Folhas vivas na manhã são à imagem da glória...)

E não é que um homem não esteja triste, mas levantando-se antes do dia e mantendo-se com prudência no comércio duma velha árvore, apoiado pelo queixo à última estrela, ele vê no fundo do céu em jejum coisas grandes e puras que dispõem ao prazer...

Parado o meu cavalo sob a árvore que arrulha, lanço um assobio mais puro... E paz àqueles que, se vão morrer, não chegaram a ver este dia. Mas de meu irmão, o poeta, tivemos nós notícias. Mais uma vez escreveu uma coisa muito doce. E alguns tiveram dela conhecimento...

Anabase, Relógio D'Água, 1992, p. 79

sábado, 29 de junho de 2013

João Bénard da Costa (1935-2009)

Há jardins – como os da Vila Imperial de Katsura, ou do Templo Tenriuji em Quioto – em que o que se procura é prolongar no espaço construído o espaço natural que o rodeia, por forma a que o jardim “espelhe” com a maior precisão possível a paisagem circundante. Cada planta é o duplo da que lhe está em frente, cada pedra a réplica da cascata «lá fora» existente, cada cor a que se acorda com a tonalidade encontrada no “exterior” (e com ela variando conforme as estações do ano). Através de uma técnica conhecida pelo nome de shakkei as montanhas, quedas de água, matas selvagens, são incorporadas no espaço do jardim, num arranjo paisagístico em que o “cenário” se interpenetra com o que o não é, de modo a restituir uma indissociável unidade e a multiplicar a ilusão até aos limites do que já não podemos ou sabemos classificar como tal. § Há jardins – como os do Palácio Imperial de Quioto – em que o ideal a atingir é tornar a intervenção humana tão discreta que esta se torne quase imperceptível. Como? Dispondo, por exemplo, entre a vegetação comum uma planta rara que aparentemente com ela se confunde, ganhando todo o seu valor pelo facto de não poder estar ali por “meios naturais” e conferindo a todo o espaço um peso de invulgaridade, pela mera presença de uma árvore ou flor inusual. É o caso da tangerineira do Palácio de Quioto (a tangerineira é uma árvore raríssima no Japão) que se destaca e confunde suficientemente das e com as plantas comuns que a cercam, para que tudo adquira o sentido de um tesouro, passando desapercebido a quem não distinga a diferente qualidade entre o “centro” e as suas “margens”, ou a quem nem sequer perceba que há centro e margens (pp. 69-70)

João Bénard da Costa, Quinze Dias no Japão, 2001

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Anna Enquist

CENA CAMPESTRE

A casa esperou por nós
pensamos. O duplo renque de árvores
acena-nos que nos cheguemos. Num sussurro,
o rio vai escorrendo cheio
entre as margens.

À hora exacta, o sol vai esconder-se
por trás dos campos. A escuridão
envolve a casa que nos protege.
Acendemos o fogo, bebemos
entre as paredes.

Vendi-me inteira à
segurança e debruço-me da janela.
Dormem cavalos e galos, a água
pisca o olho à lua, e eu a pagar,
sempre a pagar.

Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001, p. 1814

terça-feira, 18 de junho de 2013

Luís Quintais

Azagaia, Árvore, Sombra

Há objectos que perseguem a nossa infância,
depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos nomes,
a sonhada utilidade que os anima.

Poderíamos pressenti-los dentro de nós,
e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os obscurece
se ilumina de repente

e os distinguimos a contra-luz.
Silhuetas animam-se na memória. Uma breve,
quase acessória, viagem no tempo começa.

Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em casa
- eram frequentes as mudanças -
o meu pai pendurava uma azagaia na parede.

Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre.
Marcava um hábito guerreiro: imaginar que a sustinha sobre a cabeça,
que a arremessava longe, trespassando a sombra

da árvore que se erguia no quintal.
Trespassava a sombra e não a árvore, repare-se.
E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado arremesso,

começava a retrair-se e a afilar-se. Desaparecia.
Com o desaparecimento da sombra
ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao solo.

A sombra de uma árvore visita-me agora.
Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um livro
nos sonhos, e que esse livro se escreve

com a linguagem crepuscular da memória.
Sei que se trata de uma sombra orfã.
Que se soltou das contingências de lugar e luz

para viajar no eterno. Sei agora que a substância da árvore
se aliou à substância da azagaia. Que ambas vibraram,
continuam a vibrar, juntas.

Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Teorema, 1995, pp. 10-11

Vashti Bunyan, Just Another Diamond Day

sábado, 15 de junho de 2013

Jardins do Antigo Egipto

Sennedjem in Deir-el-Medina (19º dinastia) representação do cultivo de cereais, de árvores e de flores

Rose, Lis, Printemps, Verdure - Guillaume de Machaut

Jardins medievais

«A ideia de jardim fechado, ou hortus conclusus, remonta aos primeiros jardins. Por detrás dos muros e contrastando com um ambiente árido, havia sombra, água, plantas em abundância e uma aparência de ordem. O hortus conclusus medieval oferecia também protecção e permitia o cultivo de plantas, de legumes e de frutos. (...) Os jardins tradicionais estavam divididos em compartimentos, quase sempre, dispostos geometricamente.»

Christopher Bradley-Hole  in "The Rose, the Lily & the Whortleberry - Medieval Gardens" 

Planta de hortus conclusus

The Lurie Garden with Piet Oudolf

Conference Of The Birds - Dave Holland

Herberto Helder

esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo,
oh como em pedra trançada ficou dito,
ígnea pedra até ao fim de tudo e mais que tudo isso infundido,
lá onde fresca e unânime a terra que respira:
ferida funda
- e sem nada a ver com tudo,
os burrocratas indizíveis

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, 2013, p. 85

sexta-feira, 14 de junho de 2013

domingo, 2 de junho de 2013

Rewilding made simple, George Monbiot

Adélia Prado

Bucólica nostálgica

Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!

Adélia Prado, Bagagem, Cotovia, 2002, p. 47