domingo, 15 de junho de 2014

Raul Brandão (1867-1930)

O CORVO

(...) Começara a ouvir-se a voz trágica do vento, que geme, adquire aqui dentro sonoridade que põe medo e grita, chama lá nos altos como se fosse a voz da cratera pregando aos céus. Esta paisagem morta, esta cor de glicínia das pedras esparsas, o nevoeiro que azula e corre em vagas fantásticas sobre os musgões brancos, descendo ao lago sem uma ruga, para ascender até aos bordos da cratera e ficar suspenso em velário, dão-me uma cena irreal de que me custa a separar. Não compreendo bem, não sinto bem a vida desta coisa monstruosa e oculta no oceano, só para as aves e os pastores. Há em mim uma apreensão vaga, medo de interromper o grande silêncio e de chegar a ouvir esta grande mudez. Encosto-me à pedra diante do mistério, até que nos pomos outra vez a caminho descendo a pique pela outra parte da ilha. Aparecem algumas árvores muito baixas: o majestoso cedro é um arbusto a que chamam zimbreiro. O vento não o deixa crescer: torce-se, geme, tem cem anos e seis palmos de altura. Sucedem-se as moutas de queiró e o musgão que absorve e conserva a humidade como esponjas. É a parte selvagem da ilha, Feijã da Era e quebrada da Lomba, onde se encontram cabras bravas que parecem corças, de pêlo curto cor de mel, com uma risca preta pelo lombo abaixo, órbitas salientes, e depois pequenos chifres direitos e agudos, com que se defendem dos cães. Regresso pelos baixos, pelos campos de cultura, cortando os vales do Fojo e do Poço de Água.
Observo que é grande a convivência entre estes homens e os animais. Comunicação tão fácil com os bichos só devia ser assim no princípio do mundo. O animal doméstico é mais inteligente e deixa-se guiar, donde depreendo que as histórias do tempo em que os bichos falavam são uma coisa muito séria. Em primeiro lugar não há na ilha um animal nocivo: nem mesmo o milhafre, que deu o nome ao arquipélago, se atreve a passar o largo canal do pico às Flores e Corvo. Depois, não encontrei um caçador: só aqui existe uma espingarda sem fechos. As pequeninas vacas originárias da ilha - que vão acabar e é pena - são duma inteligência e duma meiguice extraordinária: - falam-lhes e elas respondem; os porcos soltam-se de manhã, saem o portão, vão para o monte ganhar a vida e à tarde cada um recolhe a sua casa. Os pássaros são familiares. Ninguém lhes faz mal. A toutinegra cinzenta de poupa escura canta num ramo ao fim da tarde mesmo ao pé de mim. O desconfiado estorninho anda aos bandos catando a rosca do trigo, sem medo nenhum. Aqui arribam os aguarelhos, todos brancos. No canal, ao pé das tartarugas, boiam cagarros aos milhares, cevando-se no banco do chicharro, e recolhendo às pedras, para toda a noite se entreterem numa conversa de velhas esganiçadas, sobre o tempo, o mar, os peixes, que a gente chega a entender perfeitamente bem, e que ainda hei-de reproduzir um dia se viver. Na grande cratera põem ovos os garajaus, que aparecem em abril e emigram em setembro. Dir-se-ia que uma índole extraordinária de mansidão abrange os homens e os bichos, sujeitos às mesmas leis severas da vida natural. As próprias cabras selvagens, ao fim de alguns dias de comunicação, se tornam familiares.
Seguimos e reaparecem os muros, os eternos currais com a sua servidão estreita que chamam canada, o portão, buraco para o gado entrar, que os pastores tapam com pedras, e o chiqueiro onde à noite recolhem os novilhos - e pelo caminho fora acompanha-me sempre dum lado o mar, do outro este labirinto inextricável de estilhaços sobrepostos. As raparigas acodem com as cabeças oferecendo-nos leite espumoso e morno e gritam às vacas: - Ougá trigueira! - para elas porem os pés a par e as ordenharem melhor.

28 de Junho

Nunca encontrei homens do campo cujo o espírito se pusesse logo em comunicação com o meu: há sempre uma parede de manha ou de inércia a romper. Estes não, estes olham-me nos olhos e falam com desassombro. Nenhuma hipocrisia (...)

Raul Brandão, As ilhas desconhecidas, Editorial Comunicação, 1987, pp. 54-55

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