terça-feira, 21 de maio de 2013

Marguerite Yourcenar (1903-1987)

A TRISTEZA DE CORNÉLIUS BERG

Trabalhou durante toda a Primavera nessa cidadezinha clara e asseada, onde o puseram a pintar lambris fingidos na parede da igreja. À tardinha, acabada a tarefa, não se recusava a entrar em casa daquele velhote lentamente embrutecido pela rotina de uma existência sem percalços, que vivia só, entregue aos tratos mimados de uma criada, e que nada entendia das coisas da arte. Empurrava a frágil cancela de madeira pintada; no jardinzito à beira do canal, o amador de túlipas esperava-o no meio das flores. Cornélius não tinha a menor paixão por aqueles bolbos inestimáveis, mas era hábil em distinguir todos os pormenores das formas, todos os cambiantes e matizes, e sabia que o velho Síndico só o convidava para saber a sua opinião acerca de alguma variedade nova. Ninguém poderia designar por palavras a infinita diversidade dos brancos, das rosas e dos lilases. Esguios, rígidos, os cálices patrícios brotavam do solo gordo e negro: só um odor molhado, que subia da terra, pairava sobre aquelas florações sem perfume. O velho Síndico pousava um vaso sobre os joelhos e, tomando o caule entre os dedos, como pela cintura, dava a contemplar, mudo e quedo, aquela delicada maravilha. Trocavam poucas palavras: Cornélius Berg dava o seu parecer meneando a cabeça.
Nesse dia, o Síndico sentia-se feliz com uma proeza mais rara do que as outras: a flor, branca e violácea, quase tinha estrias de um lírio. Considerou-a voltando-se em todos os sentidos e, pousando-a aos seus pés:
- Deus - disse ele - é um grande pintor.
Cornélius Berg não respondeu. E o plácido velhote continuou:
- Deus é o pintor do universo.
Cornélius Berg fitava alternadamente a flor e o canal. Aquele espelho baço e plúmbeo apenas reflectia canteiros, muros de tijolos e algum estendal, mas o velho vagabundo cansado contemplava vagamente nele toda a sua vida. Revia certos traços fisionómicos que avistara nas suas longas viagens, o Oriente sórdido, o Sul desbragado, expressões de avareza, de estupidez ou de ferocidade registadas sob tão brandos céus, os tugúrios miseráveis, as doenças venéreas, as brigas à facada à porta das tabernas, o rosto seco dos penhoristas e o belo corpo abundante do seu modelo, Frederica Gerritsdochter, deitado na mesa de anatomia da escola de medicina de Friburgo. Depois, ocorreu-lhe outra lembrança. Em Constantinopla, onde pintara alguns retratos de Sultões para o embaixador das Províncias Unidas, tivera o ensejo de admirar um outro jardim de túlipas, orgulho e alegria de um paxá que confiava no pintor para imortalizar, na sua breve perfeição, o seu harém floral. Encerradas num pátio de mármore, dir-se-ia que as túlipas congregadas palpitavam e sussurravam no brilho ou na macieza das cores. Na bacia de um repuxo cantava um pássaro; os bicos dos ciprestes rompiam o céu palidamente azul. Mas o escravo que por ordem do seu senhor mostrava ao forasteiro aquelas maravilhas era zarolho, e sobre a vista que perdera há pouco amontoavam-se as moscas. Cornélius Berg suspirou longamente. Então, tirando os óculos:
- Deus é o pintor do universo.
E, com amargura, em voz baixa:
- Pena é, senhor Síndico, que Deus não se tenha limitado a pintar paisagens.

Marguerite Yourcenar, Contos Orientais, Dom Quixote, 1986, pp. 137-139

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