domingo, 19 de maio de 2013

O Culto do chá

O cha-no-yu, se pode definir-se, é a arte de preparar a infusão do chá em pó, com esses escrúpulos de limpeza, com esses requintes de elegância de que só é capaz o japonês, sendo a bebida oferecida a alguns amigos de eleição, reunidos num recinto para a paz do pensamento e para o agrado dos sentidos.
Nos tempos áureos do cha-no-yu, o pavilhão que recebia os hóspedes era construído num jardim e obedecia a uma arquitectura inconfundível. No seu arranjo interno, para a cor das paredes, para a disposição de luz, para o número das esteiras, para a jarra com flores ou com um ramo de árvore, havia praxes a seguir; o kakemono (quadro suspenso na parede) devia representar uma paisagem que fosse impressionar a pupila com carinho; ou antes uma simples sentença escrita por pincel de mestre caligráfico (...).
O plano do jardim submetia-se a regras determinadas, pelas quais o engenho indígena se revelava em graças prodigiosas, aqui pelos contornos do lago e pelas pontezinhas que o cruzavam, além pela escolha dos arbustos e das pedras (...)
Um outro acessório se encontrava, cerca do pavilhão: o pedaço de rocha bruta com uma pequena cavidade cheia de água,onde os hóspedes iam lavar as mãos antes de comerem, como purificação litúrgica. Até a linguagem empregada entre os convivas obedecia a regras de pragmática: os assuntos de religião ou de política eram banidos; a frase devia modelar-se num agradável discorrer, sem ferir melindres de ninguém. A cortesia impunha-se: preceituava-se que o hóspede proferisse palavras de louvor pelo que via - alfaias de serviço, arranjo de aposento, horizontes em volta -, mas sem insistência em demasia, que poderia parecer pouco sincera ou pelo menos importuna. (...) Os artigos destinados particularmente ao chá, muitas vezes contidos num estojo especial, são os seguintes: a boceta com perfumes, que antes de tudo se lançam sobre as brasas e embalsamam o ambiente; a jarra com água fria e a competente colher feita de um pedaço de bambu; o chá em pó num cofrezinho de charão e a colherinha adjunta; duas taças, de barro ou de porcelana, uma usada no Verão de cor clara, e a outra escura, usada no Inverno; um curioso utensílio feito de finas lascas de bambu reunidas em feixe, com que se agita na chávena a mistura do chá em pó com a água morna; (...)
É o dono da casa que deve prepar o chá solenemente, prescindindo do mais ligeiro auxílio dos criados; é ele que o oferece aos convidados. A mão executa setenta e cinco movimentos, num cha-no-yu havido por singelo ... e trezentos, quando requeridas todas as formalidades ortodoxas.

Wenceslau de Moraes, O Culto do Chá



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