quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Peter Singer

O SEXO DA ÉTICA

 [Segundo Rousseau, no Emílio] «(...) A demanda do abstracto e da verdade especulativa, de princípios e axiomas da ciência, de tudo o que tende para a generalização vasta, está para além da compreensão da mulher». Hegel assumiu uma posição semelhante: o julgamento ético da mulher limitava-se à vida ética rotineira do lar e da família; o mundo dos negócios, da sociedade civil e do reino mais abstracto da moral universal estava circunscrito aos homens. Freud transportou esta tradição até ao século XX, afirmando que as mulheres «revelam menos sentido de justiça do que os homens» e «são mais vezes influenciadas nos seus juízos por sentimentos de afecto ou hostilidade».
Desde que Mary Wollstonecraft escreveu a sua obra pioneira A Vindication of the Rights of Woman em 1792, existe uma linha de pensamento feminista que defende veemente, contra Rousseau e aqueles que pensam nos seus moldes, que não existem virtudes distintamente femininas ou masculinas: a ética é universal. Contudo, houve uma linha diversa de pensamento feminista que ganhou projecção nos tempos da luta pelo voto das mulheres. Ao advogar o direito de voto para as mulheres, algumas feministas afirmaram que as mulheres têm uma abordagem distinta de muitas questões éticas e políticas e é precisamente por essa razão que a sua influência deveria ser sentida mais fortemente na política. Segundo rezava o argumento, seriam a ambição e a agressão masculinas as responsáveis pelos desmandos da guerra, com todo o sofrimento que provocavam.. Ao contrário, as mulheres eram mais cuidadosas e atenciosas. Em Women and Labour, publicado em 1911, Olive Shreiner sugeria que, tendo vivido a gravidez, o parto e a educação dos filhos, as mulheres encarariam a «perda» de vida na guerra de modo diferente dos homens. 
Tais opiniões tornaram-se impopulares nos anos 70, durante o ressurgimento do movimento feminista moderno, quando qualquer conversa acerca de diferenças psicológicas naturais ou inatas entre os sexos era ideologicamente suspeita. Contudo, mais recentemente, algumas feministas reabilitaram a ideia de que as mulheres entendem a ética de modo diverso do homem.(...)
[Nel Noddings afirma] que as mulheres tendem menos do que os homens a ver a ética em termos de regras e princípios abstractos. As mulheres, crê Noddings, têm mais tendência a responder directamente a situações específicas com base numa atitude de atenção. Para as mulheres, as relações em que estão envolvidas são centrais para a sua percepção da situação. A certa altura, Noddings desenvolve esta visão numa crítica ao meu argumento de que deveríamos ampliar o princípio moral básico da consideração igual de interesses a todos os seres que têm interesses, ou seja, a todas as criaturas sencientes. Na perspectiva de Noddings, este é um exemplo de uma atitude masculina abstracta e típica, relativamente à ética. A abordagem feminina que ela perfilha não nos levaria a ter deveres para todos os animais, mas para com animais específicos, como animais de companhia, com os quais mantemos algum tipo de relação.(...)
Há outras feministas que adoptam uma posição diferente. Alison Jaggar, por exemplo, afirmou que a «ética feminista» não precisa de ser «ética feminina»; recusa igualmente o determinismo biológico, observando que nem todas as mulheres são feministas, ao passo que alguns homens o são. De qualquer modo, no que toca à forma como cada um vive, as mulheres não limitam as suas preocupações éticas àqueles com quem mantêm relações de algum tipo. Pelo contrário, há provas de que as mulheres, a terem alguma diferença, são mais universais do que os homens na sua preocupação ética e mostram-se mais prontas a considerar uma visão de longo prazo. O popular ambientalista e comunicador canadiano David Suzuki comenta, no seu livro Inventing the Future, que, diz-lhe a sua experiência, «as mulheres estão representadas de forma desproporcionada no movimento ambientalista». O mesmo se aplica ao movimento de libertação animal. Desde o século XIX e até aos nossos dias, as mulheres ultrapassam claramente em número os homens nos grupos que vêm tentando impedir a exploração animal. (...)
Suzuki explica o grande número de mulheres no movimento ambientalista através da referência ao facto das mulheres terem sido excluídas de grande parte da estrutura de poder na nossa sociedade e, portanto, terem menos em jogo que os homens no statu quo. Isto significa, pensa Suzuki, que elas conseguem ver para lá dos nossos mitos sociais com maior clareza do que os homens. Pode haver alguma razão nisto, mas para se estar envolvido no movimento ambientalista também é necessário ter uma preocupação pelo bem-estar de longo prazo do planeta e das espécies que nele vivem. De modo semelhante, as pessoas são atraídas para o movimento de libertação animal em grande parte porque se preocupam com o sofrimento dos animais. É possível que, em termos gerais, as mulheres se preocupem mais com o sofrimento dos outros? Serão elas, porventura, o sexo mais ético? Todas as generalizações deste tipo terão certamente excepções e devem ser tratadas com cautela, mas suspeito de que exista alguma verdade nesta. 

Peter Singer, Como Devemos Viver? A Ética numa Época de Individualismo, Dinalivro, 2006, p. 310-317

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